Por: Vilebaldo Rocha em 05/2014 - Visitas: 2770

Do alpendre da casa grande, esparramado numa preguiçosa, coronel Natário  assistia à agonia do sol sendo sugado para  detrás dos picos. (O  amarelo-cor-de-abóbora no poente parecia um quadro de Vincent Van Gogh, a  dor escorria pelos raios de sol que resistiam aos puxavancos da noite).
Coronel  Natário era um homem de pulso forte; quando falava era um trovão; não  era de muita conversa, e palavra sua não se questionava. Jamais alguém o  vira dá uma gargalhada; quando muito um riso entre dentes. Seus olhos  eram dois punhais negros; raramente alguém os fitava, e quando o fazia,  sentia um repelão nos nervos.
Aos seus ouvidos chegavam o mugir do  gado, e o falar alto de seu  filho João Henrique e Filismino, o filho do  vaqueiro. Trepados à porteira do curral gritavam com o gado e  conversavam sobre seus planos, sonhos e traquinagens. Coisas de menino.  (Mas segundo alguns, os homens são forjados quando criança, é ali que o  coração toma corpo e forma e segue batendo no mesmo compasso o resto da  vida.)
___Vou sê o mió vaqueiro dos Picos, disse Filismino, inchando o  peito e segurando o chapéu de couro para o vento não levar. ___ Mas  quero ser vaqueiro de gado meu mermo. Tê meu pedacim de chão pra cuidá,  construir uma casa bem grandona, muito mais grande que essa de seu pai e  vou casar com Ritinha, a filha de seu Zeca Gamela, qui eu acho qui é a  muié mais bonita qui eu já vi. Vou ser um grande fazendêro - concluiu o  pequeno vaqueiro, sem atinar que falara alto e que o vento é fuxiqueiro.
Após  acertar uma pedra no chifre do touro mimoso, João Henrique retrucou:  ___ Pois eu não quero nem saber de roça, até que gosto de tudo isso, um  leitinho quente bem cedinho na beira do curral até que é bom, mas o que  eu quero mesmo é ir pra capital e estudar pra ser doutor advogado.
Filismino  deitava os olhos no gado com imensa satisfação; mas em uma novilha  preta com  manchas brancas, que recebera do próprio o nome de malhada,  nessa ele punha os olhos com carinho e admiração.
___ Essa novia é  minha paxão. É a mais bonita da redondeza... é tão bonita qui nem  Ritinha, parece uma fulô de mussambê no pingo do meio-dia. Um dia quando  eu crescer eu vou comprar essa novia. Filismino acabara de falar e seus  olhos eram puro sol.
___ Pede ela a meu pai, falou o filho do  coronel, também apreciando a beleza do animal. ___Ele num é seu  padrinho! Todo padrinho tem que dar presente ao afilhado. Meu padrinho  me deu três novilhas quando eu nasci.
Filismino fitou o céu e ficou  burilando a idéia em sua cabecinha queimada de sol. Não dispunha de  dinheiro; o pai também não; consequentemente, pedir seria a decisão mais  plausível. Pois para realizar um sonho é necessário atitude; apenas  sonhar não adianta.
Resolveu  lutar pelo seu sonho.
Sempre que o  coronel estava ao alcance de sua voz, ele rasgava elogios à novilha. O  coronel fingia  não ouvir. Mas intimamente sorria. E por traz daquele  riso sinistro havia uma sombra cobrindo todo o sertão.
Manhã de domingo.
Filismino acordou decidido: é tudo ou nada.
O  coronel no terreiro da fazenda dava algumas ordens a Felizardo.  Enquanto sorrateiramente, o menino vaqueiro aproximou-se com um brilho  faiscante no olhar.
___ Abença padim! Falou com entusiasmo, realçando a voz.
___ Deus te abençoe. Mecanicamente respondeu o coronel.
___ Abença pai!
___ Deus te abençoe. Respondeu sem olhar para  o menino atento às ordens do coronel.
___ Padim me dá malhada de presente! Falou Filismino interrompendo a conversa.
Houve um silêncio numa fração de segundos que pareceu uma eternidade.
Um  brilho esquisito aflorou dos olhos do coronel Natário. O futuro de  Filismino estava selado naquele riso indescritível: ou provinha das  coortes celestiais ou emergia das profundezas dos infernos.
___ Eu dou, o coronel quebrou o silêncio.
Filismino preparava-se para expressar com palavras e gestos o que seus olhos denunciavam, quando...           
___  Mas com uma condição  - redarguiu  o coronel. ___ Contanto que você  deixe eu lhe dá duas chicotadas; mas tem que ser duas, se não esperar a  segunda, não ganha nada. Nem novilha nem nada. Apenas  um vergalhão nas  costas para o resto da  vida. Explicou em alto e bom tom o coronel. 
O  pequeno vaqueiro não desceu de seu pedestal de sonhos para refletir no  que seriam duas chicotadas oriundas de uma mão acostumada a chicotear  cavalos.
Apenas indagou: __ E aí pai?
Felizardo até então se  mantivera imóvel e calado. Coitado do velho vaqueiro! Também sonhava com  algumas cabeças de gado. Um pedaço de terra para cultivar. De repente  seria o início de uma nova vida. "Ele é padrinho, não vai machucar o  menino". Pensou Felizardo, "ele gosta muito do garoto". Sem aprovar, mas  pensando na possibilidade de seu menino ganhar uma novilha, deixou que o  seu rapaz de oito anos de idade incompletos tomasse a decisão.
___ Você é quem sabe, meu filho, o lombo é seu; o sonho é seu.
O sol já não era morno. Ardia . Como o sol ardia naquela manhã!!!
O  coronel Natário pendeu o chicote atrás das costas. Num gesto de braço o  chicote cortou o vento quente de Picos e um grito de horror e desespero  penetrou em cada tímpano dos habitantes do lugar.
Sonho, carne e sangue se misturaram pelo chão.
Nos  olhos dos que ficaram, a imagem era Filismino batendo com os pés na  bunda e berrando feito um animal fustigado por um ferrão de marcar. No  terreiro o coronel e o vaqueiro não disseram palavra. No peito de  Felizardo uma angústia intraduzível: uma vontade de se matar. O coronel  sorria, intimamente sorria; parecia gritar aos quatros cantos, que  naquela terra que o diabo esqueceu e ele era o senhor, filho de vaqueiro  não podia sonhar com terra, gado e muito menos em ser fazendeiro.
Filismino depois desse episódio, jamais imaginou um ato de nobreza partindo do coração de um homem.
Não mais havia sol nos seus olhos. A noite quando caía, parecia emergir dos olhos de Filismino.
      
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