Por: Nonato Fontes em 09/2014 - Visitas: 4467
É apenas uma cruz, pensei, não tem inscrição. Talvez algum aventureiro tenha fincado aqui somente para marcar lugar. Mas para que o formato de cruz!? Terá sido isso mesmo!? Não, acho que não é apenas um marco qualquer, ali deve ter alguém enterrado, só que neste ermo ninguém enterraria um parente. Terá sido emboscada, recebido pelo menos uma cruz de salvação?
Quase não parava de pensar como era que uma cruz podia ter aparecido ali, bem à minha frente, naquele fim de mundo! Certo que não era lá uma cruz completa, o tempo fizera o estrago necessário para parecer um objeto qualquer. Porém a catacumba que restava em pedras tornava clara aquela madeira comida pelas intempéries. Mas o que fazia uma catacumba com uma cruz ali naquele morro tão distante do lugar habitado pelas vizinhanças? Deixei por um pouco o medo tomar conta de mim, passageiro, mas foi horrível, jamais imaginava um dia encontrar uma catacumba com uma cruz por caminho tão inóspito!
Segui estrada, meio estranho àquilo, não me lembrava de alguém ter falado de morador que morreu e teria sido enterrado naquele mundão sem rastro e sem pegadas, para melhor definir o deserto onde me encontrava. Aliás, nem tinha ouvido falar de morador por aquelas bandas, mas lembrei-me que ainda era jovem e por certo foi coisa do passado, por isso, o estado da cruz.
Sai um pouco à frente de onde esperava, pois o caminho era muito fechado e me perdi por um momento. Deixei a casa de minhas tias há quase quinhentos metros de distância, mas nada de desespero, sabia voltar, andei muito na companhia de meu pai por àquele sertão encaliçado, cheio de mata-pastos e juremas. Encontrava-me com alguns arranhões, mas dizem que é bom para limpar o sangue, nunca acreditei nisso, claro.
Em conversa com minhas tias - duas irmãs que residiam desde a mocidade nas propriedades herdadas do pai - Falei da viagem pela mata, do horário que tinha saído e do que encontrei pelo caminho, inclusive, e, focando mais, a catacumba com a cruz quase destruída. Depois de umas reguladas por andar sozinho, tão criança e pelo mato sem a companhia de um adulto! Insisti na catacumba por aquele mundão perdido, olharam uma para outra e silenciaram um pouco, depois uma delas falou se tratar de uma história muito comprida.
Achei que o assunto afligia as duas senhoras, então resolvi entrar em outro ponto, saber como estavam e se tinham algum recado para meus pais. Não queria estragar um domingo tão tranquilo que se abria naquela casa. Eram duas senhoras bem receptivas, não importava a idade de quem chegava, bastava que soubesse como conversar, fosse educado.
De volta, já em casa, voltei a imaginar coisas da viagem, primeiro porque tinha me perdido, quando podia andar de olhos fechados que ainda sabia onde estava. Já eram muitos anos de estrada batida por aquele caminho, lógico que sempre na companhia do meu pai, às vezes de um irmão mais velho.
Passei uns dias sem comentar da catacumba, deixei meus pensamentos de menino curioso para trás, esperava retorná-lo quando necessário, queria descobrir aquela história comprida, como disse minha tia. Meu pai, talvez soubesse me contar, mas quem disse que ele podia saber que seu filho andou ali, sozinho. Ainda mais bisbilhotando tudo, até descobrir aquela alma enterrada no meio do nada!
Não demorou muitos dias até minha revelação, seguida da pergunta ao meu pai, quem poderia ter enterrado e, quem seria o finado que mereceu uma catacumba numa distância daquela? Deixo para trás os reclames recebidos, apenas digo a decepção que tomou conta de mim após uns segundos aguardando a resposta sobre o destino daquela pobre alma. Não acha muito já ter saído por aquele mato sozinho!? Um deserto daquele!? E ainda bisbilhotando história que criança nem pode ouvir? Foi a resposta dada pelo meu pai.
Nada que diminuísse minha vontade de descobrir tudo, que história é essa, tão comprida e que menino não pode ouvir?
Andei dias... Semanas... Meses... Tentando encontrar uma resposta através de escutas, dessas de menino atrevido que anda se escondendo para ouvir o que os mais velhos estavam comentando numa roda de conversa. Tudo em vão, e foram anos e anos, vez em quando visitando aquele pobre esquecido naquele deserto seco e quente, bem na descida de um desfiladeiro que apontava para um tirão de terra, mais ou menos um hectare e meio, sendo que, apenas quinze metros em cada extrema.
A resposta só me veio quinze anos depois daquele domingo de aventura. Nem foi contada por familiares, apenas quando visitei uma amiga, companheira de colégio, foi que fiquei sabendo daquela história comprida e que menino não podia ouvir. Hoje digo e afirmo, estavam certos meu pai e minhas tias, jamais contaria isso para uma criança com aquela idade que eu tinha, à época: apenas onze anos.
Nos anos em que isso se passou, uma seca terrível se alastrou pelo sertão nordestino, atingindo tudo o quanto é de cultivo na agricultura, foram duas ou três secas de rachar, mas a de trinta e dois nem se compara. Terras nem valiam muito, estavam sendo vendidas a preço de banana, em época de seca era assim. Os proprietários não esperavam muito, arribavam de suas terras e depois negociavam com aqueles que arrebanhavam dinheiro de sobra para investir em épocas de aperreio. Saiam em busca, como carcará, esperando um cambaleante de miséria entregar seu bem mais valioso a preço de nada! Nem as viagens que faziam fugindo da seca o valor dava pra cobrir: era a miséria - da fome - sendo engolida pela outra - da ganância.
Pois Tristão, como era conhecido e, nem seu nome alguém sabia, podia perguntar a todos que viveram por ali, assim dizia o pai da amiga sobre a história de Tristão, ninguém sabia seu nome completo, até mesmo se Tristão era apelido ou fazia parte de sua alcunha. Só sabia dizer que nem era filho legítimo do herdeiro das propriedades que ali se encontra enterrado até hoje. Tristão foi vítima de uma disputa de terra, desta mesma terra de pouco mais de um hectare e meio com apenas quinze metros de extremas!
Havia dois herdeiros dos antigos donos da propriedade, um deles casou-se e não conseguiu ter filhos. A mulher resolveu pegar Tristão para criar, na época um menino de seis anos que vivia perambulando com uma baladeira pelas roças vizinhas, era filho de uma lavadeira, fruto de um relacionamento passageiro, nem sabia que rumo tinha tomado o pai. A mãe de Tristão morreu ainda jovem, o menino ficou com uma tia que pouco ligava para ele. Tristão foi registrado em cartório como filho do casal.
Aos quatorze anos Tristão viu o destino cravar em seu peito o início da via-crúcis que passara a ter depois da morte de seu pai. Sua mãe já sofrendo de um mal que tomava seu fôlego todas às noites, que surgira bem antes da doença do marido. Correndo para tentar se salvar, buscava como podia negociar a parte da propriedade que lhe cabia, mas seu cunhado nem queria saber da conversa, não aceitava propostas que lhes eram feitas. E Tristão, dois meses depois de perder o pai, fica também sem a mãe, sozinho e com apenas quatorze anos de idade.
Tristão passou a trabalhar com gado, numa propriedade de um fazendeiro meio endinheirado, nem muito, mas resistia às passagens de seca com seu rebanho inteiro, visto que tinha como importar comida. Assim vivia o menino ainda adolescente, sobrevivendo com o fruto do trabalho. Buscava segurar a parte da propriedade agora, sem querer negociá-la. A convivência com o tio, se já era ruim, passou a piorar depois que um senhor colocou dinheiro, até bom, mas na propriedade completa, só servia se fosse tudo. Tristão não aceitou a venda de sua parte e recebeu ameaça por parte do tio.
Sem ligar para isso, nem mesmo acreditando que um tio poderia ter coragem para tanto, Tristão vivia tranquilo, agora sorridente e levando seu trabalho com muito zelo. Já havia até pretendido juntar um pouco do que tinha e comprar uma garrota do patrão para colocar em sua propriedade. Pouco sabia o rapaz que seus dias estavam contados, que seu destino não namorava com a felicidade.
Foi um dia de domingo, mas ou menos por volta das nove da manhã, pois quando seu corpo foi localizado, já sem vida e ainda quente, eram dez horas. Tentaram encontrar o seu tio, para avisar do acontecido, porém esse não se encontrava em casa e ninguém sabia dizer para onde teria ido. Deixaram o aviso para sua esposa que chorava copiosamente, repetindo sempre: eu sabia que isso ia acontecer. Foi essa deixa da mulher que ajudou a polícia a descobrir o assassino e a faca usada no crime. Dizem que seu tio morreu na cadeia, depois de uma surra de um companheiro de cela que sofria das faculdades mentais.
As propriedades em questão, depois do acontecido e julgado o assassino, foram confiscadas pela união e colocadas em leilão, sendo arrematada pelo patrão de Tristão. Que depois resolveu transportar o corpo do cemitério onde tinha sido enterrado, em um jazigo pertencente ao próprio patrão, e enterrá-lo onde ele dizia ser nas propriedades do verdadeiro dono. E assim o fez, colocou ali, bem na cabeça do morro frente para as terras, como marco de uma disputa do nada que teve um final trágico.
Passei minha vida por essas bandas como costumo dizer, nasci e me criei por aqui, hoje construí família e continuo neste lugar que meus pais cultivaram sua roça e sua família. Me deixaram o legado maior que possuo, humildade, cuidado e amizade com as pessoas, trato-as como gosto de ser tratado, assim levo minha vida, hoje com meus cinquentões. Uma coisa apenas me incomoda, e por muitas vezes me faz subir o morro e caminhar por horas até a catacumba de Tristão, lá acendo uma vela e rezo um pouco, para que assim eu possa dormir tranquilo. Isso talvez, por uma única razão: de menino curioso que fui para descobrir a história tão triste que me acompanha por todo esse tempo.
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